Por Alvaro Rocha.
No cenário financeiro atual, as criptomoedas emergiram como um fenômeno disruptivo, desafiando as fronteiras tradicionais dos mercados de capitais. Contudo, uma questão central permanece em debate: criptomoedas hoje são ou não são valores mobiliários? A resposta a essa pergunta tem implicações significativas para investidores, reguladores e empresas que operam nesse setor inovador. Vamos direto ao ponto e dialogar com o arcabouço legal que direciona o entendimento do tema.
Comissão de Valores Mobiliário – CVM
A lei número 6.385, de 7 de dezembro de 1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a comissão de valores mobiliários, dispõe no que se refere aos valores mobiliários:
Art. 2o São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:
I – as ações, debêntures e bônus de subscrição;
II – os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;
III – os certificados de depósito de valores mobiliários;
IV – as cédulas de debêntures;
V – as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;
VI – as notas comerciais;
VII – os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;
VIII – outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes;
IX – quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.
A partir desse contexto, considerando que o objetivo de nosso exame busca iluminação sobre as criptomoedas serem ou não valores mobiliários, é necessário antes entender o conceito jurídico de criptomoedas.
A legislação não adota o termo “criptomoedas” e sim “ativos virtuais”. A lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022, estabelece a definição de ativos virtuais:
Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, não incluídos:
I – moeda nacional e moedas estrangeiras;
II – moeda eletrônica, nos termos da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013;
III – instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade; e
IV – representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, a exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros.
Parágrafo único. Competirá a órgão ou entidade da Administração Pública federal definido em ato do Poder Executivo estabelecer quais serão os ativos financeiros regulados, para fins desta Lei.
O método sistemático de interpretação legal permite concluir que do ponto de vista da definição de valores mobiliários, caso os ativos virtuais que não sejam representações daqueles listados nos incisos do artigo 3º da A lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022, podem não ser considerados valores mobiliários.
Neste sentido, em um caso que tramitou na CVM a respeito do projeto “Niobium Coin”, a Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE) instaurou processo para analisar a subsunção das caraterísticas do token de nome Niobium Coin aos pressupostos do conceito de valor mobiliário e então atrair a competência da CVM a respeito de sua Initial Coin Offering (ICO)[1].
Naquela análise, endossada por manifestação da Procuradoria Federal Especializada da CVM, a SRE concluiu que a Niobium Coin não poderia ser caracterizada como valor mobiliário nos termos do art. 2°, IX, da Lei n° 6.385/76 (contrato de investimento coletivo), em razão de não haver remuneração, participação ou parceria oferecidas aos investidores.
A decisão colegiada da autarquia, acompanhada de manifestação da área técnica, concluiu no sentido de que o criptoativo Niobium Coin não se caracterizava como valor mobiliário, de modo que a CVM não teria competência em relação à sua pretendida oferta inicial de distribuição[2], sendo afastada a competência da CVM, não sendo necessária a realização de nenhum procedimento junto à Autarquia.
Esse histórico provoca a reflexão sobre os tokens, a respeito dos quais, em 04/04/2023, a CVM emitiu ofício circular sob nº 4/2023/CVM/SSE, dirigido aos prestadores de serviço envolvidos na atividade de “tokenização” (“exchanges” ou “tokenizadoras”), consultores de crédito, estruturadores e cedentes de direitos creditórios.
De acordo com o item 8 do ofício, que resume de forma geral seu entendimento:
8. Nesse sentido, esta SSE vem divulgar aos agentes envolvidos, notadamente as “exchanges” ou “tokenizadoras”, mas também aos emissores, cedentes, consultores e estruturadores, o seu entendimento sobre a provável natureza de valor mobiliário dos TR cuja oferta pública é equiparável à operação de securitização de que trata a Lei nº 14.430/2022 ou oferta de contrato de investimento coletivo (“CIC”) prevista no art. 2º, inciso IX, da Lei nº 6.385, de 1976. (grifo nosso)
TR, neste contexto, trata-se de “Tokens de Recebíveis ou tokens de renda fixa”. Percebe-se que, naquela oportunidade, a CVM não solidificou o entendimento sobre o tema quando expressa “a provável natureza de valor mobiliário dos TR “. Isso porque, a autarquia entende que os TR podem ser equiparados a contrato de investimento coletivo, e ao mesmo tempo pode ser equiparado a certificado de securitização.
Ou seja, se o TR (tokens de renda fixa ou tokens de recebíveis) for emitido na forma de securitização ou de oferta de contrato de investimento coletivo (“CIC”) há “provável” natureza de valor mobiliário, portanto, atraindo a competência legal da CVM.
Também, importante registrar que a tokenização em si não está sujeita à prévia aprovação ou registro na CVM[3], exceto se vierem a ser emitidos valores mobiliários com fins de distribuição pública, tanto os emissores quanto a oferta pública de tais tokens estarão sujeitos à regulamentação aplicável.
Além disso, a própria legislação do “marco cripto”, sobre a qual tratamos neste artigo, positivou que ela não se aplica aos ativos representativos de valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e não altera nenhuma competência da Comissão de Valores Mobiliários[4].
Conclusão e opinião
A resposta sobre os tokens ou ativos virtuais serem ou não valores mobiliário é: depende. Nosso entendimento sobre o tema pode ser condensado através da citação oriunda do ofício circular “Orientações gerais sobre procedimentos a serem observados pelos emissores/ofertantes e intermediários em ofertas públicas de valores mobiliários”:
Dito isso, cabe, em um primeiro momento, a avaliação do próprio empreendedor/ofertante sobre se o token ofertado representa um valor mobiliário ou não (a qual não vincula a CVM, que pode, eventualmente, tomar providências severas caso venha a discordar da análise do ofertante e conclua ter havido oferta pública irregular de valores mobiliários). Em caso negativo, afasta-se a competência da CVM, não sendo necessária a realização de nenhum procedimento junto a esta Autarquia. Ademais é importante ressaltar que o registro da oferta pública de distribuição de valores mobiliários não se presta a conferir “aval positivo da CVM”, mas sim a viabilizar o que se julga como adequado fluxo informacional aos investidores, os quais farão por si a avaliação do investimento[5].
Orientações ao operadores do mercado
No complexo cenário regulatório atual, a oferta de tokens e outros ativos virtuais deve estar em rigorosa conformidade com a legislação vigente para evitar graves sanções do regulador nacional. As regras estão em constante evolução, e uma falha na interpretação ou no cumprimento pode resultar em penalidades severas e prejuízos significativos para os emissores e investidores. É fundamental que cada caso seja analisado individualmente, levando em consideração as especificidades dos ativos oferecidos e o contexto operacional. Dessa forma, é possível minimizar os riscos regulatórios e garantir a segurança jurídica necessária para o sucesso das operações.
Profissionais especializados no setor são essenciais para navegar pelas intricadas nuances legais e garantir que todas as etapas da oferta estejam em conformidade com a legislação aplicável. Com uma abordagem personalizada e detalhada, esses especialistas podem orientar sobre as melhores práticas e estratégias para aumentar as vendas dos ativos virtuais, sem incorrer em riscos desnecessários. Se você deseja assegurar que suas operações estejam plenamente alinhadas às exigências regulatórias e otimizar seus resultados, considerar uma consulta com profissionais experientes pode ser o passo decisivo para o seu sucesso.
[1]“Stablecoins como valores mobiliários: modalidades de derivativos e contratos de investimento coletivo?” Egmon Henrique de Oliveira Costa, Luiz Matheus Tavares Pompeu.
[2] Processo Administrativo CVM nº 19957.010938/2017-13, julgado em 30 janeiro de 2018, decisão colegiada da CVM.
[3] Ver, nesse sentido, (i) PAS CVM nº RJ2017/3090, Dir. Rel. Carlos Alberto Rebello Sobrinho, julgado em 07/05/2019; e (ii) PAS CVM nº 19957.003406/2019-91, Dir. Rel. Gustavo Machado Gonzalez, julgado em 27/10/2020.
[4] Art. 1ª, parágrafo único, lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022.
[5] Ofício-Circular nº 1/2021-CVM/SER.